Em sua história como mídia, Breath of Fire: Dragon Quarter é um conto sobre uma tão potente quebra de padrões que fora recebido com decepção por muitos, tornando-se um título até hoje olhado com desdém pelos fãs. Como narrativa, é uma história de como uma pessoa com nada a perder é capaz de subitamente dar seu todo para um propósito maior, ainda que pelos motivos mais singelos. Como jogo, é um desafio inesperado para o gênero do JRPG, tendo um enfoque muito maior em dificuldade de execução e manejamento de recursos que seus predecessores. Mas em todo caso, as primeiras palavras do jogo, ditas no mais inesperado russo da história do Playstation 2, conseguem dar o tom de tudo que há acerca deste: Este é um pequeno conto sobre o Tempo.
Novembro de 2002, dois anos após o imenso sucesso do quarto e mais aclamado título da franquia, Dragon
Quarter teve desde seu anúncio o peso de quase uma década de tradição e renome para zelar. Todos estávamos ansiosos para ver o como a fórmula da série iria se manifestar com o salto entre o 2,5D para o 3D de fato. Estávamos espiritualmente prontos para mais uma longa jornada que se arrastaria por mais de 80 horas, dias a fio sentados no sofá ou no tapete se deliciando com cada passagem e reviravolta… Mas nos foi entregue algo tão diferente que muitos não souberam reagir. Como um disparo de uma arma, este Breath of Fire se mostrou breve, direto e poderoso até demais para ser processado corretamente, o que o deixou perdido em uma névoa de confusão e preconceitos por anos.
Uma década depois, começamos a ver a ascensão de títulos mais curtos, narrativas mais breves, ganhando espaço e clamor dos jogadores. O trabalho da Telltale e a culminação de Undertale são exemplos de como passamos a apreciar experiências curtas e de alta rejogabilidade. Se lançado hoje, Dragon Quarter teria uma recepção muito mais calorosa por finalmente estar dentro do seu tempo, perfeito tanto para os que contentam-se com uma narrativa que pode ser concluída em oito horas quanto para os dispostos em ver tudo o que o jogo oferece em oitenta.
Temos um longo caminho a frente |
Ryu 1/8192, compareça ao QG dos Patrulheiros
Seja bem vindo ao Shelter, um complexo industrial-habitacional que se estende por 1km de subsolo, os últimos suspiros e o novo mundo de uma civilização que destruiu a Superfície em uma terrível guerra. Aqui, assim como em qualquer sociedade industrial, a norma é simples: a nobreza vive nos andares mais altos onde alimentos e recursos são produzidos e o ar é mais limpo, e outros patamares sociais vão gradativamente sendo enlatados nos andares mais baixos e menos cuidados. Ding-dong, você, Ryu 1/8192 (seu D-Ratio, um estranho denominador de nível social, bem baixo por sinal), não é parte da nobreza, e o seu trabalho é um dos mais perigosos e sujos nos confins do Low-Sector. Como um Patrulheiro você é incumbido com todo o serviço pesado das corporações locais, e sua mais nova tarefa é escoltar uma carga experimental da BioCorp. Durante a tarefa, uma agente da organização criminosa Trinity te ataca e descarrila o seu vagão. Depois disso, você encontra uma moça muda com estranhas asas nas profundezas do Shelter e no mesmo momento a voz de um dragão morto ecoa em sua mente e lhe enche de poder e um propósito: atinja o Céu."Aqui sua papelada e saiam do meu escritório." |
Existe um grau interessante de história de fundo e revelações para aliviar a aparente simplicidade, porém a forma que estas são mostradas se funde com a jogabilidade e é de tanto polêmica.
Corra, Sabote, Rasgue, Repita.
A primeira coisa a ser dita para quem nunca sequer pesquisou sobre BoF:DQ:você vai bater desde muito cedo em muros cuja única forma de superar é resetando o seu jogo e tentando novamente. E a experiência é projetada para isso, sendo um dos únicos jogos que conheço a oferecer uma espécie de New Game+ sem mesmo você ter sequer concluído o primeiro ciclo. O incentivo é tamanho que para fazer um save permanente é preciso gastar moedas de orelhão da mesma forma que rolos de tinta em Racoon City.
O SOL (Scenario OverLay) é uma mecânica que permeia o jogo como um todo, adicionando camadas de história e do seu progresso a cada vez que forçado a voltar atrás devido um Game Over: com ele você pode reiniciar a aventura enquanto mantendo equipamentos, dinheiro, itens (seu inventário é limitado e as finanças são escassas) e um estoque de pontos de experiência que podem ser alocados livremente, o que te permite atravessar rapidamente mapas antigos e, se bem planejado, ter mais chances contra os desafios ainda não superados. A cada nova partida, até mesmo a dificuldade de alguns inimigos comuns se ajusta dinamicamente com a sua performance para manter as coisas interessantes, e mais e mais aspectos da história são mostrados, revelando pontos de vista diferentes do de Ryu, além do passado dos outros personagens.
"Seu guarda, eu posso me explicar..." |
Também é possível derrubar adversários antes mesmo de trocar golpes com eles, usando de iscas e explosivos para distrair e enfraquecer alvos e conquistar assim vantagem - e bonificações por lutar estrategicamente em vez de na força bruta.
Mas o mais importante para a experiência é provavelmente o contador no canto superior direito da tela e ao quê ele se refere: a sua forma dracônica — afinal não seria um Breath of Fire sem uma —, e aqui temos também a espinha dorsal de toda a tensão no qual o jogo se baseia.
Diferente do resto da franquia, aqui apenas temos uma forma, Odjn, e as vantagens que ela confere em potencial de estrago são capazes de trivializar com facilidade o oponente mais forte que vier. A sacada é que como custo adicional para os brutais golpes do dragão, vem aumentos vertiginosos no contador que já naturalmente cresce a cada passo dado pelo jogador, e atingir 100% do mesmo resulta em um game over automático. O preço de de derrubar um chefe com um estalar de dedos em um dado momento pode ser tornar a luta contra o próximo em uma missão suicida, quando não, terminar a aventura em um corredor vazio ao esgotar seu limite de tempo.
Até onde você está disposto a abrir mão de sua humanidade? |
A Hora da Reunião
A todos, em especial aos antigos fãs da franquia, que antes viram Breath of Fire: Dragon Quarter com desgosto, eu lhes convido a dar-lhe uma nova chance com os olhos do presente e pelo que ele é por si só, independente do título que ele carrega. Não é uma experiência perfeita, mas é de uma atmosfera tão densa e tão única que poderia ter revitalizado a série de forma exemplar se tivesse sido compreendida mais cedo, em vez de ser o seu epitáfio.
Revisão: Pedro Vicente
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