Com o lançamento não tão recente de Heavy Rain, um dos títulos de aventura mais aguardados e de maior peso para o PlayStation 3, em 201... (por Samuel Coelho em 07/10/2013, via PlayStation Blast)
Com o lançamento não tão recente de Heavy Rain, um dos
títulos de aventura mais aguardados e de maior peso para o PlayStation 3, em
2010, a produtora Quantic Dream alcançou um elevado nível de notoriedade tanto
entre o público gamer como entre críticos e roteiristas de cinema, graças a uma
alta qualidade de narrativa e a uma proposta inovadora e muito bem executada,
que coloca o jogador para sentir o máximo possível de todas as emoções dos
personagens, enquanto assume o controle de grande parte do desenrolar de uma
história cheia de mistérios através do simples peso de suas decisões.
Evolução Quântica
Talvez não seja do conhecimento de todos, mas Heavy Rain, a publicação mais recente da Quantic Dream, não foi o primeiro acerto de grande sucesso de David Cage. Depois de Omikron: The Nomad Soul, um jogo excelente e muito bem bolado, mas não tão bem executado, a Quantic Dream avançou um degrau em amadurecimento que a tornou capaz de conhecer de maneira melhor o propósito dela na indústria dos games, que, como todos nós já sabemos hoje, está intimamente ligado à criação de dramas interativos através de mecânicas típicas de jogos de aventura point-and-click, colocadas em um patamar que dá prioridade total ao fluxo narrativo contínuo, às vezes deixando de lado fatores aparentemente indispensáveis como os da dificuldade de jogo.
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Omikron: The Nomad Soul, um misto de ação, aventura e FPS |
O primeiro resultado desse amadurecimento foi o cinemático Indigo Prophecy, lançado em 2005, e também conhecido como Fahrenheit. Com alguns elementos de jogos, como Shenmue, e de filmes, como Matrix, nele assumimos o controle e a perspectiva situacional de três protagonistas, que se lançam, através de nós, em uma teia de acontecimentos envolvendo assassinatos ritualísticos, investigação policial e ocultismo, algo que em última instância nos coloca cara a cara, e repentinamente, diante de uma série de segredos conspiratórios e metafísicos dos mais perigosos, que ameaçam colocar a humanidade inteira em vias de extinção através de uma nova era glacial, decorrente do destino de uma criança muito especial, cujo nascimento foi anunciado por uma profecia antiga.
Rito Macabro
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Lucas Kane |
A história começa com a narrativa de Lucas Kane, um homem na casa dos trinta anos que se auto denomina como apenas mais uma marionete do sistema. Uma marionete, que como vítima das circunstâncias, tem sua vida envolta em uma série de acidentes trágicos que inevitavelmente acabam arremessando-a no abismo de um inferno gelado.
Após uma breve e lúgubre introdução dos acontecimentos por vir, somos levados ao banheiro de um pequeno restaurante. Lá, vemos nosso narrador, como que num transe de possessão, gravando com uma faca na própria carne de seus antebraços a estranha figura de uma cobra de duas cabeças. Após terminar a macabra inscrição, Lucas se levanta e, com os olhos esgazeados, caminha tropegamente em direção a um cliente que entrara há pouco no banheiro e que não percebera a presença de Lucas, que agora avança em sua direção com a faca que usou para se automutilar firmemente enredada nas mãos.
Enquanto isso acontece, vemos flashes de alguém encapuzado no meio de um círculo ritualístico, cercado por velas. Fica claro que tal pessoa misteriosa está controlando à distância todos os movimentos de Lucas, enquanto este permanece em transe, como objeto de uma cena que ironicamente usa o sentido real do termo “marionete”, usado pelo protagonista na introdução aparentemente em um sentido mais simbólico.
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Cuidado com banheiros públicos |
O homem desprevenido só consegue perceber o perigo quando já é tarde demais, e é esfaqueado uma série de vezes, mas com extrema precisão, na região do coração. Lucas subitamente reganha o controle de si e só então percebe o ato terrível que acabou de cometer. É aí que passamos a controlar diretamente o “protagonista-marionete”, que acabou de despertar do transe e está desesperado. Lucas não acredita no que fez e você precisa ajudá-lo a escapar dessa situação.
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As coisas sempre podem piorar |
A partir desse ponto você decide o que fazer e começa a moldar a história do jogo. Você pode escolher ajudar Lucas a esconder o corpo e as pistas, se limpar, pagar a conta e sair o mais calmamente possível, ou pode ignorar tudo isso e tentar sair como se nada tivesse acontecido pela porta da frente do restaurante, que está acidentalmente guardada por um policial que resolveu parar para comer alguma coisa, conversar e descansar durante sua rota noturna.
Um filme ou um videogame
O desenrolar do jogo segue basicamente esse mesmo padrão de narrativa cinematográfica, cheio de tomadas de decisão e de vários níveis de interação com objetos e pessoas. A barra de energia dos personagens é substituída por um medidor de estresse, que quando atinge o limite de depleção, faz com que os personagens acabem desistindo da própria missão, podendo cometer até suicídio. Assim que conseguir fazer Lucas escapar do restaurante, você assumirá o controle de dois jovens agentes de investigação policial: a inspetora Carla Valenti e o sargento Tyler Miles.
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Carla Valenti e Tyler Miles |
O gameplay parece mimetizar com grande fidelidade o desenrolar de um filme de drama e suspense policial, porém, a aventura é repleta de momentos de ação e muita tensão. Por meio de um esquema de minigames, parte das emoções dos personagens controlados se torna mais “palpável”.
Parece algo pequeno, mas tal mecânica, quando bem executada, consegue criar em nós uma noção básica da emoção ou da ação do personagem naquele exato momento em que o minigame acontece. Seja através do pressionar de botões com um ritmo que imita as batidas do coração, através do equilíbrio entre o uso de dois botões pra aludir autocontrole ou esforço físico, ou através de sequências que correspondem ao uso dos membros do corpo do personagem em movimento na execução de determinadas ações.
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As câmeras ajudam a detalhar a dramatização |
As câmeras do jogo são fixas em vários momentos, talvez para tentar aproximar os takes das animações do jogo dos de uma obra cinematográfica. No geral isso é ótimo, mas pode gerar algumas ocasionais e breves dores de cabeça em quem ainda não está muito acostumado com este estilo, contudo, isso não tira nem minimamente o brilho do jogo como obra completa.
Visões
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Uma infância envolta em mistérios. |
Desde criança, Lucas Kane sempre foi muito solitário. Enquanto seu irmão e seus amigos brincavam, Lucas preferia ficar sozinho em algum canto, lendo, refletindo e parecendo ser afetado por algo da realidade das coisas que o deixava alheio à rotina comum das outras crianças. Atormentado ocasionalmente por visões de acontecimentos futuros, ele, principalmente quando garoto, parecia ver o mundo sem algum véu de ilusão que mantinha os outros aprisionados num cotidiano fabricado.
Mas, com o passar do tempo, e na tentativa de se integrar melhor à sociedade, Lucas, apesar de continuar sendo uma pessoa solitária, foi começando a deixar de lado suas capacidades incomuns, pensando que melhor seria tentar se encaixar nos parâmetros do mundo real do que ir parar em uma sala acolchoada preso em uma camisa de força. Partindo dessa decisão, suas visões praticamente sumiram. Até o trágico dia em que ele se vê forçado a tirar brutalmente a vida de uma pessoa. Daí então, a jornada do jogo o levará a descobrir mais sobre si mesmo e sobre vários mistérios ocultos da própria sociedade em que vive.
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Forçado a se tornar um assassino, Lucas terá de lidar com o peso das consequências |
Paralelo espiritual com Heavy Rain
Hoje em dia, anos após o lançamento tanto de Indigo Prophecy como de Heavy Rain, é difícil não perceber que ambos os jogos seguem uma fórmula praticamente idêntica tanto para a estrutura do estado psicológico dos personagens quanto para o padrão de gameplay.
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A transformação e a evolução através da dor da perda é um tema recorrente |
Lucas Kane e Ethan Mars são praticamente irmãos espirituais. Os dois lutam para superar a perda de pessoas queridas para a morte, os dois enfrentam o fim de um relacionamento amoroso, talvez por conta de problemas psicológicos, que se desenvolveram em decorrência da perda, e os dois têm alguma ligação com o ocultismo. A diferença é que, enquanto o caso de Ethan Mars é algo que pode ser diagnosticado simplesmente como uma desordem mental “normal”, o caso de Lucas o coloca totalmente com os pés no mundo do sobrenatural.
Multiplos caminhos, finais diferentes
Tirando as várias formas de se ganhar um game over categórico e dramático pelo decorrer da aventura, Indigo Prophecy conta com três desfechos drasticamente diferentes tanto para os personagens quanto para a humanidade. E o mais intrigante é que talvez o melhor dentre eles é desbloqueado quando acabamos não obtendo sucesso em tudo o que temos que fazer durante a batalha final.
Como uma obra-prima atemporal, mesmo nos dias de hoje Indigo Prophecy consegue se sobressair, e muito. Se você jogou Heavy Rain, e gostou, e ainda não teve a oportunidade de jogar Indigo Prophecy, não perca tempo, jogue. Será uma das melhores experiências no mundo dos games que você terá, e não será novidade se você gostar deste jogo até mais do que de Heavy Rain. A nível de curiosidade, vale dizer que, ao que tudo indica, o novo jogo da Quantic Dream, Beyond, promete retomar muito mais da estrutura da aventura sobrenatural de Indigo Prophecy do que do próprio Heavy Rain, tomando em nota positiva os avanços técnicos e artísticos conseguidos depois do sucesso nas duas séries. É esperar para ver. Mas o fato é que até hoje a Quantic Dream nunca nos desapontou, então é quase certo que em breve iremos ter mais uma obra-prima nas mãos.
Revisão: Bruna Lima
Capa: Vitor Nascimento
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