Já se tornou rotineiro falar que o Vita anda carente de bons jogos. Apesar de alguns lançamentos decentes, a sua biblioteca de títulos ainda está engatinhando. Se você, assim como eu, já terminou os poucos games que valem a pena, nada melhor do que um bom e velho RPG para ajudar a retirar a poeira do portátil.
Persona 4: The Golden é um daqueles títulos que segue a risca a receita de sucesso dos RPGs japoneses: história muito bem elaborada; personagens envolventes e cativantes; um sistema de combate sólido e elementos de exploração que se encaixam perfeitamente com a atmosfera do jogo. Se você jogou ou não a versão do PS2, pouco importa, dê uma chance para essa obra prima. Garanto que não irá se arrepender.
O primeiro ponto que vale ser destacado é a peculiaridade narrativa de Persona: esqueça toda aquela atmosfera de Japão feudal, mundos fantásticos recheados de dragões, calabouços e aventuras dignas de um herói corajoso. A história aqui se passa nos tempos atuais. Mas não se engane ao pensar que, por conta disso, tudo é monótono e sem graça.
Diversão contemporânea
No lugar de mitos sobre seres fantásticos, temo aqui as famosas lendas urbanas, acompanhadas de inúmeras histórias macabras com aquela pitada de ocultismo. Soma-se isso a situações típicas da adolescência e pronto, temos um pano de fundo perfeito para um título mais complexo, focado mais nas características psicológicas dos personagens do que na aventura em si. Portanto, prepare-se para uma atmosfera completamente diferente da qual você está habituado.
A história começa de uma forma aparentemente normal: você acompanha um garoto da cidade grande que se muda para um lugar pacato do interior. Chegando lá, seu tio e sua prima o estão esperando para levá-lo pra casa e mostrar a cidade. Um aparente sentimento de monotonia e tédio é logo perceptível no começo, pois, basicamente você precisa vivenciar o dia a dia de um adolescente normal. Mas em questão de poucos minutos, são apresentados uma série de personagens que se tornarão fundamentais para o desenvolvimento da história.
Em toda cidadezinha que se preze há pelo menos uma lenda urbana, e aqui não é diferente. Correm boatos sobre um misterioso programa de TV que passa à meia-noite nos dias chuvosos. Nele é possível ver a sua alma gêmea, ou mesmo o seu destino. O personagem principal, a princípio cético, muda de ideia quando decide testar a veracidade da história. Em uma noite chuvosa, sua TV misteriosamente liga sozinha, mostrando uma mulher misteriosa. A partir daí, o enredo começa a ganhar importância quando pessoas são encontradas mortas ou simplesmente desaparecem sem deixar rastros. E adivinhem quem decidirá investigar esses eventos estranhos?
Materialização do (sub) consciente
Acredito que a palavra “bizarro” defina melhor os acontecimentos que se seguem, já que, para investigar a fundo os casos você precisa literalmente passar para o lado de dentro da TV, indo parar em uma outra dimensão, habitada por estranhadas criaturas chamadas “Shadows”, que possuem o poder de manipular a psique humana.
Explicando melhor: quando uma das vítimas é levada para a dimensão alternativa, é como se os Shadows revelassem o seu “verdadeiro eu”. Por exemplo, um estudante que possui problemas em definir a sua sexualidade ou que odeia a sua própria família, encontraria no outro mundo uma versão sua que não esconderia esses sentimentos, mas que, muito pelo contrário, exaltá-los-ia sem o menor pudor. Agora imagine uma pessoa tendo que enfrentar esse alterego de frente.
Por trás dessa batalha, há um fator psicológico marcante. Enfrentar a materialização do lado mais obscuro do "eu" através dos Shadows é uma forma de assumir que aquela representação faz parte de você, logo, ela não pode ser deixada de lado, no limbo do seu inconsciente. O interessante disso é que, ao enfrentar esse desafio, os personagens se deparam com duas opções: sucumbir a esses sentimentos e ser devorado pela Shadow ou finalmente aceitar que eles fazem da natureza humana. Caso escolham aceitar esse seu lado obscuro, o resultado é uma materialização física dessa fusão: uma Persona.
Diferentes para cada personagem, as Personas são um ponto crucial do jogo e podem ser interpretadas como as ferramentas usadas pelo protagonista e seus amigos para combater os Shadows. Por algum motivo desconhecido, o personagem principal consegue invocar mais de uma Persona, o que garante ao jogador uma gama muito grande de estratégias para as batalhas. Basicamente, você as consegue lutando e ganhando as cartas de tarô responsáveis por invocá-las. A boa notícia para os donos do Vita é que o número delas aumentou consideravelmente nessa nova versão.
Não há como dissociar as Personas do sistema de combate, outro ponto alto do jogo. Adotando uma marca registrada dos RPGs tradicionais, aqui as batalhas também são em turnos, e tudo é feito de forma dinâmica e intuitiva. Cada um dos personagens possui à sua disposição um leque de opções: atacar com a arma, defender, usar itens e invocar a Persona. Se você não quiser controlar seus aliados, pode deixá-los no modo automático, mas essa não é uma escolha recomendável, pois, à medida que o jogo vai ficando mais difícil, é preciso fazer uso de muitas estratégias para vencer os chefes. Ou seja, deixe de preguiça, se divirta controlando todos os membros do grupo e abuse das vantagens e desvantagens de cada inimigo.
Dualidade narrativa
Muitos RPGs concentram o seu foco apenas na narrativa principal, ou seja, na épica missão do grupo. Aqui as coisas funcionam de forma diferente, dando oportunidade para que você conheça tanto a história principal quanto os traços psicológicos e problemas pessoais dos vários personagens. O jogo possui uma estrutura que divide o enredo em dois momentos: a missão dos protagonistas evocadores de Personas que gira em torno dos assassinatos e desaparecimentos na realidade alternativa e a vida pessoal e cotidiana destes jovens , contendo elementos sociais interativos típicos da adolescência de todos eles.
É durante os momentos de investigação do sobrenatural que a ação acontece. Ao descobrir que alguém sumiu, você deve entrar na TV e se preparar para encontrar o que vier pela frente. Para isso, é preciso percorrer as dungeons que, apesar de seguirem uma linearidade bastante repetitiva, possuem layouts muito bem feitos, já que representam na estrutura do próprio cenário e na natureza dos Shadows a personalidade oculta das pessoas que se encontram aprisionadas na outra dimensão. O clima sombrio do jogo se encaixa perfeitamente com esses momentos, já que as surpresas imaginativas de uma mente perturbada podem ser tão ou mais perigosas que o mais terrível dos dragões.
Porém, eu acredito que o grande destaque de Persona 4: The Golden não está na presença dos elementos sobrenaturais, mas sim nas situações vivenciadas pelos personagens no dia a dia. Ainda que o pano de fundo seja o colegial, o jogo é perfeito para aqueles que gostam de apreciar um bom enredo, pois permite que você conheça, se identifique, odeie e ame os personagens. Cada um deles possui uma complexidade que te faz querer avançar fundo na história para compreender os seus anseios, sonhos e frustrações. Essas interações são essenciais não apenas para você descobrir mais sobre o Yosuke ou a Chie, mas para evoluir os seus Social Links, mecânica fundamental para o desenvolvimento do jogo.
Colocando de forma simples, os Social Links são uma maneira de desenvolver o relacionamento do protagonista com os seus amigos, sejam eles NPCs ou controláveis. É possível interagir de várias formas diferentes em cada uma das inúmeras situações de socialização que ocorrem durante o jogo. Você pode desde responder certo ou não a uma pergunta feita pelo professor na escola e considerar ou ignorar um pedido de ajuda. Todas as suas decisões influenciam diretamente na história principal (possibilitando inúmeros finais) e podem ser recompensadas com o ganho de atributos essenciais. Só que mais do que simplesmente fortalecer o protagonista, a principal razão pela qual os Social Links são interessantes é a possibilidade de ver os personagens amadurecerem.
É graças a essa mecânica que muitos consideram o jogo como um "simulador social". Cada um dos personagens que fazem parte dos Social Links está disponível em um determinado momento do jogo. Alguns você encontra na escola, outros na lanchonete e por aí vai. Como o seu tempo durante o dia é limitado, você precisa escolher em quais amizades vale a pena investir, o que, novamente, influi na história.
É surpreendente como a Atlus foi capaz de criar um sistema tão fluido e coerente. As inúmeras histórias vão se intercalando de uma forma incrível, fazendo parecer até mesmo uma daquelas novelas colegiais. De certa forma, esse é o grande barato do jogo: poder participar da vida das pessoas e realmente fazer a diferença, tanto social quanto psicologicamente.
Novidades mais do que bem vindas
Como eu disse no início, Persona 4: The Golden traz algumas novidades marcantes, ainda que não seja um remake completo. Os gráficos em 3D ganharam uma melhora bem discreta, o destaque mesmo fica para o acréscimo das animações, que ficaram espetaculares e perfeitamente encaixadas no enredo. Porém, o que rouba mesmo a cena nesses aspectos técnicos é a trilha sonora, composta por Shoji Meguro. Esqueça as músicas clássicas e prepare-se para muito J-Pop e J-Rock, estilos que são perfeitos para um jogo focado na cultura japonesa contemporânea. A dublagem americana também está ótima, e não fica devendo em nada para a versão nipônica.
Um dos aspectos que mais repercutiu nessa nova versão, é a conectividade online. Se estiver conectado à internet, você pode verificar o que os outros jogadores fizeram em determinadas situações. Está com dúvida se tomou a escolha certa? Não consegue passar de uma parte? Basta conferir as escolhas dos outros ou mesmo pedir por ajuda nas Dungeons. Não sei se é a melhor adição para o jogo, afinal, a diversão está em tomar suas próprias decisões sem se basear em ninguém. Mas, de fato, a mecânica pode ajudar aqueles jogadores que ainda estão começando a compreender a complexidade do título.
Se você, assim como eu, é um antigo fã da série, a Atlus preparou uma surpresa incrível: a TV Listings, um conjunto de canais onde é possível assistir shows das bandas que compõem a trilha sonora do jogo, ver as animações originais da versão de PlayStation 2, assistir entrevistas e, o melhor de tudo, conferir na íntegra uma palestra completa que discute os personagens do jogo usando conceitos, teorias e fundamentos da psicologia. Estas são adições suficientes para você conhecer ainda mais o universo da série. Isso que é surpresa agradável.
Simplesmente épico
Ok! Já apresentei motivos de sobra para vocês perceberem o quanto o jogo é bom. Mas como nem tudo são flores, o título deixou muito a desejar em um aspecto: as funções do próprio Vita. Os recursos do portátil foram completamente ignorados, não há sequer a função touchscreen (que poderia facilitar e muito as batalhas e menus). Não me entendam mal, o jogo é espetacular, mas esses deslizes fazem com que ele não passe de mais um port, aliás, pode-se contar nos dedos da mão do Lula os jogos exclusivos lançados até agora para o Vita.
No entanto, no fim das contas, Persona 4: The Golden é um jogo sensacional, talvez o melhor para o portátil junto com Gravity Rush e Assassin's Creed III: Liberation, mas ainda não é aquele título que o Vita precisa para sair do limbo. E como a esperança é a última que morre, só nos resta esperar que a Sony abra os olhos e decida investir no portátil esse ano.
Prós
- História incrível que foge do convencional;
- Personagens maduros e cativantes, graças ao Social Links;
- Sistema de Personas muito bem elaborado;
- Combate divertido;
- Conteúdos extras que fazem a alegria dos fãs
- Trilha sonora perfeita para o clima do jogo.
Contras
- Não utiliza os recursos do Vita;
- Não é um remake completo.
Persona 4: The Golden - PlayStation Vita - Nota 9.5
Revisão: Samuel Coelho
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