Analógico: A Estrutura Heróica em Heavy Rain

A noção do termo herói está presente em diversas culturas e épocas; podemos encontrá-la no Oriente Médio, na Europa Medieval, em diversas tribos primitivas e até mesmo na Mitologia Clássica (Kratos, estou olhando para você!). O que nos faz heróis? O que é ser um herói? Qual a diferença, por exemplo, entre o Batman e a Joana D’Arc?

O Mito do Herói

Um herói é alguém que se consagra como símbolo através de ações praticadas em favor de uma grande causa. Nos tempos passados, tal causa poderia ser uma tarefa envolvendo um rei, a pátria ou até mesmo uma dama (a lenda de Excalibur e dos Cavaleiros da Távola Redonda apresenta a realização de tais ideias). Dentro de seu desenvolvimento, essa figura passa por momentos chave que demonstram o quão heróico será seu destino na história. Quase como regra geral, todo herói possui um nascimento humilde, passa por provas de força, de coragem e por lutas triunfantes contra as forças do mal, até que finalmente alcança a redenção. Pense na história de Joana D’Arc. E pense também na história de Bruce Wayne.

A Psicologia Analítica pode contribuir bastante quando pensamos no termo “arquétipo de herói”. De acordo com ela, a presença deste arquétipo visa: “desenvolver no indivíduo a consciência do ego −  o conhecimento de suas próprias forças e fraquezas − de maneira a deixá-lo mais  preparado para as difíceis tarefas que a vida há de lhe impor” (JUNG, 1968). Há, neste contexto, uma ideia coletiva permeando a definição do vocábulo “herói”, que se torna responsável pela união semanticamente deste à diversas culturas através dos tempos.

Dito isso, chegamos então a Heavy Rain. O jogo (ou seria filme interativo?) da Quantic Dream foi considerado um marco quando lançado graças a seus gráficos e trilha sonora refinados, personagens cativantes e pela união disso tudo a uma forma diferenciada de jogabilidade baseada em Quick Time Events. Desse modo, a história, dividida por capítulos, apresenta o mundo do jogo de forma única.

Quatro por Quatro

No centro da trama temos quatro personagens: um pai que precisa salvar seu filho, uma jornalista que precisa de informações, um policial aposentado que precisa salvar a si mesmo e um agente do FBI que precisa resolver um mistério. Essas quatro vidas são testadas ao limite, unidas pela busca de uma segunda chance e pela vontade de ir além.

Os heróis que buscam a redenção.

Ethan Mars apresenta uma evolução clássica do mito do herói. Sua peregrinação durante a aventura representa a construção da força necessária para o surgimento do ato heróico. Ele transcende limites, passa por provas de força cujo único objetivo é o de sacrificar-se perante a causa de salvar seu filho. Ele se entrega, doa-se em favor de algo maior do que ele mesmo, e ao término da jornada, sofre uma transformação. 

Madison Paige demonstra que a estrutura heróica não é apenas uma modificação física, mas que o herói precisa também, necessariamente, de uma transformação emocional. Sua evolução durante a história explora questões mais abstratas e subjetivas, como confiança e solidariedade. Madison, em muitos momentos, confia cegamente em Ethan e ajuda-o sem nem mesmo conhecê-lo. É essa doação, esse dever para com a causa maior (representada para ela através da figura do Assassino do Origami), que a impulsiona. A única protagonista feminina não se utiliza de força física, mas evolui através da reflexão.

Norman Jayden é o herói que carrega consigo o fardo da realização. Sua jornada simboliza a transcendência de limites e obstáculos. Diferente da personalidade de Ethan (que se utiliza quase que completamente da Ação), a personalidade de Norman possui como característica central a Reflexão, ou seja, o ato de colocar-se em frente ao espelho para observar e analisar seu próprio reflexo. Seu vício na droga triptocaine é questionado em diversos momentos, colocando-o (e consequentemente o jogador) em um processo árduo de escolha entre prosseguir utilizando-a ou sofrer as consequências de não usá-la.

Scott Shelby é o exemplo de que, em algum momento de sua vida, o herói terá obrigatoriamente que realizar uma escolha para definir seu caminho; assim como ocorre com Anakin Skywalker, e seu progresso pelo do lado negro da força, até se tornar Darth Vader em Star Wars. Shelby apresenta as características de um herói que utilizou sua força não para favorecer uma causa maior, mas para fins egoístas. O quarto protagonista simboliza o próprio ato de escolher; sua história apresenta momentos de reviravoltas, demonstrando que nem os heróis estão livres das consequências de seus atos, e que algumas vezes, eles podem não conseguir realizar sua missão por caírem em tentação.

Todos os quatro, na verdade, precisam enfrentar seus medos. Suas inseguranças e aflições. Assim como um herói, que precisa enfrentar seu próprio"dragão" e lutar em sua própria batalha, as personagens encontram-se em momentos distintos de motivação e existência, mas acabam se unindo pela curiosidade da descoberta e pela necessidade de encontrar uma resposta. Tal resposta refere-se, porém, aos próprios questionamentos e motivações de cada um, que de tão particulares se tornam fatores coletivos e arquetípicos.

“Quão longe você iria, para salvar alguém que ama?”

As histórias se unem quando os heróis percebem que precisam lutar contra as forças do mal de forma a saírem vitoriosos. O Assassino do Origami surge simbolicamente como a força contrária a evolução natural, como o obstáculo maior que eles precisam transcender para  que cheguem a própria evolução. Assim, essa força é como o vilão, que desequilibra as forças da natureza para que a figura do herói possa surgir, devolvendo o equilíbrio e manifestando a evolução.

Cada personagem em Heavy Rain está em busca de sua redenção. E a estrutura heróica de cada um apresenta o desenvolvimento necessário para redimi-los. As quatro histórias expressam a necessidade dos heróis por uma purificação, para que erros passados ou angústias vindouras possam ser sanados. E a chuva, densa e forte, simboliza tal redenção. Ela é como um quinto personagem, onisciente e onipresente, cuja função é narrar todo o enredo enquanto lembra os personagens de que eles fazem parte constantemente de um processo de purificação.

Ethan Mars, Madison Paige, Norman Jayden e Scott Shelby estão atrás do Assassino do Origami − atrás de sua grande causa, de sua grande realização... Cada um é o protagonista de sua própria história. E cada história fala de transcendência, perdas e angústias, mas também de realizações. Heavy Rain nos mostra que além de termos heróis, precisamos também ser, nós mesmos, nossos próprios heróis.  

Revisão: Samuel Coelho